MEUS ESCRITOS
CHANZ
Nada havia ao redor. Deserto de casas, de prédios, de
poluição. Cheio, todavia, de um vazio puro: uma paisagem absurda de
tranquilidade, um sonho real, uma verdade a ser alcançada por qualquer um.
Olhei pra cada lado e não vi coisa alguma, a não ser um horizonte longínquo,
ora azul, às vezes cinzento; noutras pardo, noutro instante colorido, porém distante. Não havia fim nem
nada. Um templo moderno, talvez construído naquele instante. A estrutura antiga
manifestava um estilo entre colonial, gótico, romano. Invulgar... muito
esquisito, mas calmo. Inspirava‑me concórdia.
-
Chanz!
Assim chamei o templo, sem querer, ao contemplá-lo. Não
sei o que significa, nem se há em alguma língua.
- Chanz!
- C h a n z... a n z... a n z...
Ecoava, caso o chamasse ou o mentalizasse. O que se
dissesse, ou se passasse na mente, ressoava.
Chanz me fez sentir força de contemplação, análise do
mundo, do homem... aí entrei com o passo de urubu malandro. Lá dentro, a beleza
excedeu‑se, me causou estranheza e me fez sentir convicção interior. O meu
conhecimento não foi suficiente pra detalhar; é indescritível o sobrenatural, e
isto só pode ser alguma obra divina.
Mirei tudo curioso e vagarosamente, meneando a cabeça,
parando em cada minúcia. Tinha a forma de ele. Não encontrei imagem alguma, nem
mesmo religiosa. Sem luxo, entretanto belo, limpo e confortante; sem recepção,
porém acolhedor; sem ninguém, no entanto houve diálogo: como, não sei, mas
teve. A cada pensamento, em toda análise, nas conclusões em que chegava, sentia
me renovar.
Sem mais nem menos, a vontade de voltar. Os pés, no
entanto, não voltaram. Quanto mais tentava retornar, aproximava-me ainda mais
do altar do templo. Não havia bem um altar, parecia um trono dos reis
hebraicos, um recanto pra meditação. Não sei como minudenciar...
-
Chanz era o que era!
Dirigi‑me ao trono, mas não alcancei. Vi outros templos
como se fossem imagens infinitas de dois espelhos planos paralelos. De vez em
quando, tentava outra vez alcançar o fim, mas não conseguia me aproximar.
Sempre havia mais um. Engraçado, do começo estimava‑se a dimensão de um
auditório comum, no entanto jamais se alcançava. Presumi, enfim, que era pra
parar. Quis me ajoelhar, não pude. Tentei postar as mãos, como quem queria
rezar, não consegui. Quis levar a mão ao peito, também não. Continuei em pé; à
vontade, mas inerte. Relaxei. Aí ressoou:
- Chanz! c h a n z!...a n z...a n z...
O relax deve ter feito eu notar uma imagem de um grupo
de crianças postadas bem na minha frente. De mãos dadas, sorridentes, brincavam
de roda. Envolta numa nuvem de fumaça, de névoa, sei lá, foi substituída a
imagem. Havia, agora, diante de mim, uma exposição, sem ninguém, de armas
nucleares. Nova imagem. Desta vez, um frasco de vidro em labaredas. Tenho dúvidas
se era mesmo de vidro. O formato tinha imagens nítidas, a matéria não. Até tive
vontade de pegar, contudo, não consegui. Eram absolutamente límpidas, mas
intocáveis... e eu permanecia sereno, relaxado.
- Chanz! c h a n z!...a n z...a n z...
Senti‑me subitamente em mim. Tornei rumo à porta que não
houvera encontrado ao entrar. Nem ao menos sei como entrara. Saí. Além
passadas, olhei pra trás e não vi porta nem templo; só o horizonte continuava,
monotonamente azul, unicamente azul, agora com uma interminável fila de gente,
esperando a vez de entrar em Chanz... senti que houvera falado Chanz em voz
alta e não ressoara.
-
Que é Chanz?
Alguém me interpelou, batendo no meu ombro. Acordei
assustado. Encontrava‑me no living,
num sofá, molhado de suor, visivelmente fatigado. Algum tempo depois, rememorei
tudo e indaguei a mim mesmo: simbolizariam as labaredas do frasco a purificação
da alma?... ou exprimiriam, como ameaça, o instrumento exterminador do
homem?... demonstrariam as armas nucleares que um dia serão apenas peças de
exposição sem platéia, como testemunhas de celebração da paz?... ou
simbolizariam com a exposição, sem ninguém, o que restará na Terra?...
revelaria Chanz o templo interior em que estas crianças, de mãos dadas,
sorridentes, manifestavam‑se como símbolo de concórdia e de convivência humana?...
-
Chanz! C h a n z!... a n z... a n z...
Ecoou, finalmente, dentro de mim.
(Águas brancas, 1973)
um dia haverá
basta esperança e amor ou nunca
o poeta
(Águas brancas, 1973)
é o homem de mais encanto
entretanto com tanto espanto
pensa que é santo
ou é um príncipe
que adormecido ou estremecido
jamais é ouvido nem vencido
mas esquecido
o real de meus versos
(Ideias,1976)
não exponho
apenas sobreponho
ao tempo
o gosto
e o intento
da dúvida
das minhas ideias
viver não é só viver
(Águas brancas, 1973)
viver é sofrer e sentir
viver é sentir e satisfazer-se
viver é relembrar e entrever
viver é pensar
quantos estão vivos?
pouquíssimos
Marido Preguiçoso
In.:Histórias Contadas no Alpendre, 2014.
Era um homem muito preguiçoso. Sua mulher vivia enchendo o saco:
— Você num vai arranjar um emprego, um trabalho não, hein?
Ele dizia:
— Não! O que há de ser meu, às minhas mãos há de vir.
Um dia, sonhou com uma botija. No sonho viu que era muito grande. Pela manhã, ao contar pra mulher, ela perguntou:
— E você não vai arrancar não?
— Vou não! O que há de ser meu, às minhas mãos há de vir.
Indignada com a preguiça dele, ameaçou:
— Então, eu vou arrancar com o cumpade!
— Pode ir.
Ela e o compadre meteram dos pés. No caminho, combinaram que ficariam pra eles dois e fugiriam juntos, abandonando o marido preguiçoso. Cavaram, cavaram, cavaram, quando já estavam muito suados, em tempo de não aguentarem mais, acharam um pote bem grande.
Com muito esforço, tiraram de dentro do buraco. Quando limparam a boca do pote, tirando os garranchos, saiu um monte de besouros bem grandes, do tamanho de um pinto, e correram atrás deles dois, que dispararam pro rumo de casa, picados de besouros e arranhados dos garranchos.
Quando os besouros desistiram, ela parou:
— Cumpade, já que não conseguimos, vamos esperar que os besouros voltem, aí a gente pega o pote com besouro e tudo e joga dentro da rede daquele vagabundo.
O compadre concordou. Depois de algum tempo, foram, devagarzinho, com bastante cuidado, até que conseguiram ver que os besouros tinham entrado no pote.
Tamparam, o compadre fez das tripas coração pra botar no ombro e foram pra casa.
Chegando lá, chegaram perto da rede do marido preguiçoso, que estava deitado, dormindo, chega roncava feito um porco, a mulher disse:
— Joga, cumpade, que é pra ver se esse peste não se levanta com as picadas desses besouros. Assim o compadre fez.
Qual não foi a surpresa dos dois, quando menos esperaram, os besouros se transformaram em barras de ouro e prata. Com o peso da botija em cima dele, acordou, olhou pro ouro, depois pra mulher, e repetiu:
— Eu não lhe disse que o que tivesse de ser meu, às minhas mãos havia de vir?
Preço Impagável
quanto vale o amor
quanto custa
vale o que todos possuem
custa o que ninguém dá
vale a boa vontade
custa a compreensão
Cantador de Viola
In.:Histórias Contadas no Alpendre, 2014.
Tinha um cantador de viola que era muito chamado pra fazer cantoria nas cidades vizinhas.
Um dia, seu compadre lhe contratou pruma cantoria na fazenda e foi logo lhe advertindo que ele teria que pegar o transporte cedo, pra poder chegar a tempo em Vila Verde e de lá tomar o pau-de-arara que passava bem em frente da Fazenda Santo Antônio.
De tanto o compadre lhe azucrinar com as recomendações, acabou se descuidando que, quando chegou em Vila Verde, o caminhão já tinha passado.
O cantador era tão verminoso por cantoria, que, ao invés de ficar a ver navios, resolveu seguir a pé, mesmo sabendo que ainda faltavam seis léguas pra chegar até a fazenda.
Botou a viola no saco, empendurou no ombro e arrochou o nó, cantarolando uns versos, enquanto caminhava.
Depois de muito caminhar, apareceram em sua frente quatro homens, carregando um defunto numa rede. Ainda que no escuro, dava pra perceber que caminhavam ligeiro, de cabeça baixa. O cantador ouvia nitidamente o roçar das calças dos homens caminhando.
Ele gostava de acompanhar enterro e sempre dizia:
— Se você ajudar a levar os outros pro enterro, não faltará quem lhe leve no dia que você partir pra cidade dos pés juntos.
Por isso, aumentou o passo, tentando alcançar o grupo. Quanto mais aumentava as passadas, mais longe ficava.
Ele se arrepiou dos pés à cabeça e, falando com seus botões, disse:
— Isso não tá parecendo coisa deste mundo!
Mal ele fechou a boca, o defunto se mexeu, se levantou da rede devagarzinho, pegou a rede, voou por cima da sua cabeça - fazendo da rede um tapete voador - e sumiu.
Suas pernas ficaram trêmulas, bambas.
Pensou:
— Se eu correr, vou morrer de cansaço, porque a fazenda ainda tá muito distante.
Parou, pegou o rapé, deu uma nargada, procurou se acalmar e continuou devagar, rezando, pra esquecer de todo o medo.
Depois da meia-noite, chegou na fazenda. Bateu na porta, o compadre acordou, abriu, mandou entrar e disse meio carrancudo:
— Como já é muito tarde, não vou mais fazer jantar pra você, mas em cima da mesa da cozinha tem pão dormido e café na garrafa.
E foi dormir de novo.
O cantador comeu. Tentou muito dormir, mas não conseguiu, rolando na rede de um lado pro outro, revivendo aquela imagem até o sol raiar.
De manhã cedo, a empregada veio lhe chamar, dizendo que o patrão tava chamando pro café.
Sentado, sentindo-se um arigó, perguntou ao Compadre:
— Naquela encruzilhada de Vila Verde, aparece alguma espécie de assombração?
O compadre, já de bom humor, deu uma estrondosa gargalhada...
Inverno vital
In.: Águas Brancas, 1973.
Em milhares pingos d’água,
cai um a mais, e nada aumenta
nem aumentará jamais.
Numa só vida, caem milhares dias;
nem mesmo assim aumenta
o esquecimento das fantasias.
Numa só alma,
cabe um único amor,
mas a própria alma o espalma
com medo do plantio da dor.
Milhares pingos d’água,
numa só vida,
numa só alma,
fazem-nos esquecer as mágoas.
Ipuçaba
In.: Águas Brancas, 1973
Minha ópera fracassada,
minha última desventura
da minha brejeira amargura
e da minha dor ressacada;
meu refúgio desnorteado
pela quimera do destino...
me dá teu lírio de açucena,
sem exigir nenhuma cena;
me abraça como eu te abraço,
abandona-me qual a ti,
me sufoca com teu mormaço
e esquece que daí parti...
Ipuçaba – grande riacho!
Ipuçaba – “aquele abraço”!
BANDO DE LAMPIÃO
In.: Histórias Contadas no Alpendre, 2014
-
Cumpade Batata, é verdade que você disse que tem vontade de entrar pro bando de
Lampião?
- É!
Você sabe onde ele tá?
-
Sei. Tá no pé da serra, daqui a meia légua. Naquela casinha abandonada dos
Soisa.
Ele
agradeceu ao compadre, arreou a burrinha, montou e seguiu pra lá. De longe, foi
avistado por um capanga de Lampião, que vigiava de cima de uma catingueira,
montando logo a cavalo e riscando do lado dele, que o rabo era um rei, sem ele
nem esperar:
- O que você faz por esses arredores?
Desembucha logo o que vai querer, senão morre na ponta da peixeira.
- Lampião tá aí?
- Tali deitado.
- Eu quero falar com ele.
Ficou de orelha em pé, mas, sentindo
que ele era de paz, resolveu levar o homem até Lampião.
- Me acompanhe.
Ao chegar, Lampião deu um chilique
danado com a chegada do estranho, mas como já tava lá, foi logo mandando ele
falar.
- Lampião, eu quero entrar pro seu
bando!
Então, Lampião perguntou:
- Você tem coragem mesmo?
- Acho que tenho.
Lampião, desconfiando que ele pudesse
querer lhe passar a perna, disse:
- Vou fazer um teste com você, mas se
não passar, morre. Quer fazer?
- Quero.
Lampião tava deitado numa rede armada
no caibro de sabiá. As pernas cruzadas, e os braços embaixo da cabeça.
- Pois olhe, é o seguinte: quando eu
contar até três, você corta os punhos da rede. É pra cair só a rede no chão. Se
eu cair, você pode me matar. O mesmo vai acontecer com você. Se você cair no
chão, eu lhe mato. Quer topar?
- Topo!
Quando chegou a hora da onça beber
água, assim foi feito: Lampião se ajeitou na rede e mandou que ele cortasse os
punhos.
Quando ele passou a faca, que olhou,
Lampião já tava em pé.
- Agora é sua vez.
Então ele se deitou, se ajeitou e
gritou:
- Já!
Lampião passou a faca e...
- Cadê o homem?
Quando Lampião olhou, ele tava atrás
dele com a rede debaixo do braço.
A sombra
In.: Águas Brancas, 1973
surge
imposta pela jubilação do sol
febril e vermelho congênitos
corre
no leito dos ignorantes
da tecnologia e da
ambição
Ecogravidez
In.: Águas Brancas, 1973
subiu num ônibus
bastante lotado
uma moça
deu sinal
o ônibus parou
alguém exclamou
quer táxi
minha senhora?
a maternidade é longe!
A flor
In.: Águas Brancas, 1973
a flor
que tenho
é um desejo
da maçã
que teve
o seu perdão
o amor
que tenho
eu não vejo
pois a flor inteira
não passa de ilusão
A chuva
In.: Águas Brancas, 1973
a chuva é fruto amante
que não se vale dos imorais
viva eu que a amo
viva ela quando reclama
que não a querem mais
viva eu e viva ela
que sempre cai
mas é donzela
Bárbara!... no andar, nos olhos
no cheiro, no abraço... no amor.
Bárbaros teus seios, teus lábios molhados
de luxúria, pudor e prazer.
Bárbara!... no saber, no saber gozar
ante os sussurros e o toque carnal.
Bárbara!...tua voz, teu sorriso, teu piscar
tua pele de boneca e teu corpo sensual.
Tua cintura, Bárbara? bárbara!
Tuas coxas? bárbaras, bárbaras!
Teu sexo?... bárbaro, bárbaro!
Bárbara, para os outros...bárbara!
Para ti, barbaríssima!
Para mim, barbaramente minha!
DÊ CÁ MEU OSSO
In.: Histórias Contadas no Alpendre, 2014
- Ás de paus!
- Eu quero. E tome sete de espada!
- Desse jeito eu bato!
Eram alguns amigos e vizinhos que se juntavam na boquinha da noite pra jogar baralho apostado. Quando não era baralho, era bozó. E haja trololó. Isto, quando não dava em rebu.
Cada um com uma vantagem pra contar, mas quando se falava em alma, tinha restrição. Um se retorcia. Outro tomava chá de cadeado. Já outro resmungava e ninguém entendia. Outro dizia que esse negócio de alma era conversa pra boi dormir. Outro, metido a corajoso, azucrinava o amigo do lado. Até que um se virou pro corajoso e disse:
- Aposto que tu num vai no cemitério agora e traz um osso de uma cova.
- Também aposto. Disse outro.
- Eu também aposto, completou um terceiro, desde que não tenha mutreta.
Apostaram e casaram em cima da mesa improvisada: uma tábua em cima de quatro rumas de sucatas de tijolos. O corajoso saiu pra cumprir a aposta. Quando chegou lá, olhou prum lado, pro outro, nem o coveiro vigia tava por perto. Achou uma ossada de uma cova substituída pra enterrar outro indigente. Pegou um osso, parecia ser da perna, quando inesperadamente uma voz grossa, compassada e rouca, falou:
- EEEsse nããão, é do meu paaai!
Ele teve um tremelique, devolvendo ligeirinho o osso. Arrepiou-se, mas continuou e pegou outro:
- EEEsse nããão, é da minha mãããe!
Desta vez, deu um sopapo e soltou mais rápido ainda. E pensou:
- Será que vou perder a aposta? São cinco por um, vale quatro diárias de serviço alugado. É ganhar na moleza e meter a mão na mufunfa. Do jeito que tô matando cachorro a grito, tenho de continuar, vou ganhar quatro de lambuja.
E assim a voz se repetiu mais outras vezes, sempre dizendo que o osso era de alguém. Resolveu acabar com esse furdunço. Agarrou um osso na marra e vazou. Saiu voado, depois de responder:
- Ou do seu pai, ou da sua mãe, ou da sua avó, ou do seu avô, esse agora vai comigo.
A voz não desistiu e saiu fungando no cangote do corajoso, repetindo:
- Dê cá meu ooosso!... Dê cá meu ooosso!... Dê cá meu ooosso!.. Dê cá meu ooosso!
O corajoso em disparada, e na carreira, sem olhar pra nada. Só pensava em ganhar a aposta, nem que se lascasse. Era questão de honra. Tava no maior miserê. E a voz atrás:
- Dê cá meu ooosso!... Dê cá meu ooosso!... Dê cá meu ooosso!.. Dê cá meu ooosso!
Chegando na casa onde tavam jogando, ainda correndo, soltou o osso em cima da mesa improvisada, perto do dinheiro da aposta e disse, mantendo a carreira:
- Ganhei a aposta, taí o osso, e o dono vem correndo aí atrás.
Mal terminou a frase, todos se levantaram assustados e saíram em disparada, feito uma bala. Sem rumo, se espalharam apavorados.
A voz chegou na mesa do jogo, juntou o dinheiro, botou no bolso e foi pra casa.
TÚMULO QUADRADO MORNO
Meteu a chave no portão preto e exótico. Entramos, curiosamente, por ele, apesar de haver ao lado outra entrada, sem porta. Tudo ali, tranquilo. E a beleza ostentava o capricho dado àquele ambiente místico.
Ele me levou a um mausoléu lindo, lindo. Embora excêntrico, limpíssimo e brilhante como granito. Lembrava aquele anel das brincadeiras da infância de passar o anel: pras crianças, tudo limpo, puro, inocente.
Sobre a tampa, pequenos jardins, mais ou menos de dois palmos cada, embelezados com rosas, ervas, galhos e espinhos perfeitos, perfeitos. Pareciam artificiais. Sua coberta aparentava leve, já que, sem esforço, ele pôde movê-la, acrescentando:
─ Só os familiares mais próximos podem deslocá-la. Um estranho não consegue. Quer ver, tente!
Tentei, não consegui. Parecia de chumbo!
Externamente, tinha o formato quadrado. Talvez quadrado perfeito, com as bordas arredondadas. Dentro, como um extravagante labirinto ovalado. E todos os moldes do corpo, ou dos símbolos guardados, eram como pequenas paredes finas e arredondadas. E ele continuava a mostrar, explicando:
─ Veja, só a cabeça fica pro lado de dentro do túmulo; do pescoço até os pés, tudo enterrado, mas fora do quadrado.
Quis interrompê-lo. CGD (este era seu código, aliás, seu nome de antigamente) deu sinal com a mão espalmada pra esperar e continuou:
─ Esta espada, mesmo rachada, representa o espírito de luta quando em vida e, portanto, deve acompanhá-lo depois da vida terrena. Assim também o crucifixo, ainda que não bento; afinal, o que valia era a fé que papai tinha e a certeza de que eu o havia mandado benzer antes de dar. Foi-se sem saber a verdade.
─ E aquela caneta, por que está ali? Por que próximo à cabeça dele? Perguntei, apontando com o dedo indicador.
Respondeu, mansamente, que simbolizava sua companheira das horas de insônia, de inspiração, de revolta, de alegria, de dúvida, de delírios sensuais... Foi e não foi, lá estava com a caneta na mão, registrando seus mais importantes momentos e suas ideias voadoras.
Fez-se silêncio por algum tempo. Uns minutinhos, talvez. O suficiente pra fincar os olhos em um chip de computador e fazê-lo reflexivo, concentradamente reflexivo. Com os olhos arregalados de espanto, procurou responder a pergunta sobre a significação daquele equipamento moderno, pequeno e muito junto ao cérebro.
─ O chip é o cérebro artificial que trabalha pelo cérebro humano, fazendo possível a realização das atividades mais chatas e de cálculos intermináveis, humanamente complicados. E, se não tivermos cuidado, poderá, um dia, substituir-nos em muitas outras atividades até agora afeitas ao homem.
Esta última afirmação me deixou pensativo, divagando o pensamento a uma distância momentaneamente inatingível e a uma mente sensivelmente atingida. E ele percebeu minha viagem mental. Sorriu, quase sem separar os lábios, declarando:
─ O chip do futuro te levou ao destino do cérebro humano ou, se não estou errado, ao que virá a ser o cérebro artificial. Está sendo difícil aceitar ou achar as duas fronteiras que separam a inteligência informatizada da inteligência desumanizada, não é mesmo?
─ É, acho que sim!
Respondi meio indiferente, meio descrente, meio atordoado. E aí voltei os sentidos praquele quadrado funesto, diante de mim e de todos os seres inquietos ante a incerteza do aqui e do além.
Tornei momentaneamente a mim e, só aí, percebi o cérebro extraído da cabeça e junto ao chip, que me transportou às reflexões anteriores. Mal abri a boca, já me interrompeu, procurando explicar a aproximação dos dois cérebros.
─ Diante da incerteza do amanhã e do medo do homem ser dominado pela máquina, é bom que mantenhamos os dois cérebros próximos um do outro, a fim de que ambos se vigiem, se protejam e se relacionem harmonicamente, tentando evitar a destruição de um ou de outro. Quando duas forças se vigiam, se relacionam, tendem a respeitar uma à outra: é a lei da evolução!
Fiquei tonto, a ponto de procurar me agarrar em algum objeto. Segurei-me na coberta do túmulo quadrado. Senti-a fria, quase gelada. Meu espanto alertou-o pra me fazer novas explanações, agora sobre este estado térmico.
─ A tampa, afastada do quadrado, explicou CGD, separou a energia absorvida por ela e transmitida pelo interior do mausoléu. Esta separação esfriou as relações entre a proteção da tampa e as transmissões energéticas e espirituais do corpo guardado.
E continuou:
─ Quando fechado, a temperatura é morna, devido à relação entre o corpo, o quadrado, a tampa e o mundo. Ao chegarmos, estava assim. Você não percebeu, porque não tocou nele.
Fiquei meio assustado, já que não havia visto um túmulo morno, como que conservando a temperatura do corpo, ainda que depois da vida.
Despercebidamente, arranquei uma folha de erva santa do pequeno jardim cultivado sobre a tampa e instintivamente pus na boca. Imediatamente cuspi, levado pela repulsa ao gosto da folha mastigada. E ele, entendendo tudo, como que justificando, disse:
─ O gosto amargo só existe quando ela está afastada do lugar. Ao retornarmos a tampa pra fechar o quadrado, todas as folhas, ervas, flores, e até os espinhos, voltam ao sabor inicial, liberando um cheiro delicado e apresentando um gosto adocicado, ameno, puro.
Percebi, então, que expirava um cheiro enjoado, quase idêntico ao exalado pelos cemitérios convencionais. E, como que inquieto por permanecer tanto tempo com a tampa fora do quadrado, CGD fechou-o e, mesmo sem trancar, tudo se vedou, ouvindo-se, agora, uma música afetuosa, leve, orquestrada, embora não se pudessem identificar os instrumentos, o autor e...
Foi aí que retornei a mim e percebi que havia, antes, um ruído estranho aos meus ouvidos...
Lembrei-me, então, que CGD havia falecido há dias.
decadência
tudo
orgulho
metade
tarde
nada
nada
nada
nada
até...
caminho eterno
cheguei
malícia
bonança
malícia
para não ficar triste
continuei e quis amar
para não viver jamais
com amor longe de mim
sem luz
cruz só
imortal
como pó
brinquedo exagerado
brinquei de faz de conta
qual uma criança com fogo
que quando cheia de alegria
é demolida como uma ópera
desfeita em rebelião
brinquei de faz de conta
porém não brinco mais não
auxílio da humanidade
In.: Águas Brancas, 1973.
pedi socorro
deram-me Maria
pedi trajos
tiraram-me o calção
pedi abrigo
tiraram-me o telhado
pedi a vida
deram-me um canhão
análise do mundo que julguei existir
aqui estou...
enganei-me
estive
VISITAOMUNDO
aqui têm igrejas
aqui têm sinos
aqui têm rezas
sempre mais (em todo canto)
aqui têm edifícios
(difíceis de se compreenderem)
aqui têm estádios
(até parecem estados estranhos)
têm expressos, aviões, trens, multidões
sempre mais (em qualquer recanto)
aqui tem mar
o céu é maior
tem matéria espessa e dispersa
tem ainda o que não sei
já procurei
e quero
e exijo que me digam
aqui tem gente?
mulher postiça
seus cabelos denunciam feminilidade
perante um gesto de paquera e conquista.
meu olhar, traído pelos seus olhos cintilantes
como as pérolas dos brilhantes,
caros, raros, sedutores e fascinantes;
penetrante, como meu pedaço errante e animado
em busca do sexo da amante!....
meus meios entre os seios rijos,
na medida exata dos desejos;
macios, no toque mágico dos afagos;
suculentos, no arrepio doce dos lábios;
acolhedores, no descanso do cansaço do amor!...
seu bumbum arrebitado e vigoroso
me provoca, todo audacioso,
pra momentos de prazer e de amor gostoso;
e, ante o meu pedaço duro
entre as carnes traseiras, 1
esqueço de todas asneiras
feitas, vividas e sentidas nas dianteiras!...
depois, todavia, os olhos, os cabelos,
as formas, os seios, que seus não são,
nada mais disso me ouriça,
porque o tempo do silicone
traz à face o disfarce da mulher postiça.
análise do mundo que julguei existir
aqui estou...
enganei-me
estive
(1973)
o poetaé o homem de mais encanto
entretanto com tanto espanto
pensam que é santo
ou
é um príncipe
que adormecido ou estremecido
jamais é ouvido nem vencido
mas
esquecido
A MEU PAI
Chico Mourão
tenho um ídolo que não é poeta
nem artista de cinema.
à televisão não foi
e nunca saiu em revistas...
tenho um ídolo que não tem saber;
não é psicólogo nem professor;
não é cientista nem político...
muito menos cultivador da mentira...
tenho um ídolo
que não tem anel no dedo
nem na malota...
tenho um ídolo
que o mínimo que ele fez
foi dar-me o sol, foi dizer-me sim!
eco-gravidez
subiu num ônibus
bastante lotado
uma moça;
deu sinal
o ônibus parou
alguém exclamou:
-quer táxi
minha senhora?
a maternidade é longe!
Soneto ipuense nº 9
quando tenho a "bica" e ipu ao lado
nada me impede o contentamento
nem mesmo a água do batizado
faz-me esquecer o sofrimento
quando tenho a "bica" e ipu ao lado
tudo volta sem padecimento
mas mesmo assim fica engatilhado
na rudeza do meu pensamento
que as tem como a brisa do mar
refrescante quanto verdejante
nos lírios do sono a passar
no canto do vento fulgurante
e na plenitude do pensar
nos pingos das águas a soprar
corpo atrevido
subiu num ônibus
bastante lotado
uma moça;
deu sinal
o ônibus parou
alguém exclamou:
-quer táxi
minha senhora?
a maternidade é longe!
Soneto ipuense nº 9
quando tenho a "bica" e ipu ao lado
nada me impede o contentamento
nem mesmo a água do batizado
faz-me esquecer o sofrimento
quando tenho a "bica" e ipu ao lado
tudo volta sem padecimento
mas mesmo assim fica engatilhado
na rudeza do meu pensamento
que as tem como a brisa do mar
refrescante quanto verdejante
nos lírios do sono a passar
no canto do vento fulgurante
e na plenitude do pensar
nos pingos das águas a soprar
corpo atrevido
como nos primeiros dias, quero você
com seu corpo atraente e atrevido,
seus sussurros suaves no ouvido
e uma vontade intensa de me morder.
e se um dia não puder me amar,
e se um dia não puder rolar,
que permaneça amável, doce e calma,
ao nutrir de esperança minha alma.
quero você, delicada, meiga, serena;
quero você, rolando na cama,
dizendo ardentemente que me ama...
quero você sem briga, sem ira,
e sem marca alguma de ferida,
porque a desejo por toda vida.
"vidas secas"
não vejo ali
uma cor
vejo uma emancipação
seca
das cores secas
vejo o fiel perfil
do ambiente fiel
vejo a perspectiva áspera
e crítica
de um espírito humano
(In.: Valdemir Mourão, Águas Brancas, 1973)
mulher postiça
seus cabelos denunciam feminilidade
perante um gesto de paquera e conquista.
meu olhar, traído pelos seus olhos cintilantes
como as pérolas dos brilhantes,
caros, raros, sedutores e fascinantes;
penetrante, como meu pedaço errante e animado
em busca do sexo da amante!....
meus meios entre os seios rijos,
na medida exata dos desejos;
macios, no toque mágico dos afagos;
suculentos, no arrepio doce dos lábios;
acolhedores, no descanso do cansaço do amor!...
seu bumbum arrebitado e vigoroso
me provoca, todo audacioso,
pra momentos de prazer e de amor gostoso;
e, ante o meu pedaço duro
entre as carnes traseiras, 1
esqueço de todas asneiras
feitas, vividas e sentidas nas dianteiras!...
depois, todavia, os olhos, os cabelos,
as formas, os seios, que seus não são,
nada mais disso me ouriça,
porque o tempo do silicone
traz à face o disfarce da mulher postiça.
quentura do meu sexo
quero teu sexo outra vez
e, de uma vez só, teu corpo inteiro
nu, matreiro, cheiroso e macio.
cobiço o carinho que me encanta;
pressinto entre as pernas o manto do desejo
e, entre os lábios, o capricho da volúpia...
e depois, como companheiro de tua carne,
senti-la ao meu total dispor...
anseio aquele amor parceiro,
aquela paixão vicejante
que, ligeiro, umedece meu topo
ao sugar-te, sugar-te, sugar-te...
sorver-te entre pernas e seios
e, com nossos membros,
preencher o espaço vazio
deixado pelas roupas caídas;
e, ante o gozo excitado por nossos toques,
esquentar-se bem apertadinho,
como quem se aquece do frio.
não posso abdicar deste jeito faceiro!...
tuas partes e minha sede me guiam;
minhas mãos, de ti, me saciam
e me fazem marcar tuas curvas na areia,
cujas formas esperam, sedentas,
a quentura do meu sexo;
e, perplexo, sinto uma miragem
que me embaça a alegria
de outra vez te amar um dia.
Força pra amar
Amar é dom da alma,
necessidade da mente,
desejo do corpo
e consequência de um reencontro!
Felicidade não chega por acaso.
Ela é uma conquista irrigada pelo carinho,
pelas carícias, pela cumplicidade
e pela vontade de ser feliz!
Já o alimento da alma
nutre o corpo de desejo
e o coração transborda de prazer.
E o alimento do corpo
nutre a alma de desejo
e o coração extravasa sua força pra amar!
Neste dia da poesia, uma poesia sobre poema
AUTONEGAÇÃO
não busco o po(ema)
apenas converso com minhas ideias
não construo o poema
como a um edifício
não o quero como fuga
não o desejo como inspiração
quero conversar com minhas ideias
na certeza da minha dúvida
Homenagem ao dia da mulher, 8 de março.
Poesia pra quem ama nega matuta
(In: poesia pra quem ama, 2ª ed.)
a nega matuta
inocente, linda
tão pura também
que foi pro rio
banhar-se nua
e ouvir o vem-vem
é a nega matuta
bem nua, tão bela
com a água correndo
no corpo que tem;
é a nega matuta
é a nega vem-vem
que um canto escuta
sem dizer de quem...
vem-vem! vem-vem!
a nega matuta
que correu pro galho
tão bela, bem nua
correu pro vem-vem
abraçou-se a ele
e beijou-o tão bem
corpo a corpo
amor por amor
ventura vem-vem...
ah! nega matuta
se tá tá feliz
esconde do homem
teu nobre vem-vem!
SONHOS SEM FIM
(In: poesia pra quem ama, 2ª ed.)
meus sonhos
meu corpo
meu grito
o cansaço
do abraço
no peito
distante
de mim
são sonhos
feridos
vividos
de anseios por ti.
fugidos
teus vultos
teus gestos
teus lábios
alheios
teus olhos
de sim
são olhos
são lábios
são gestos
e vultos
de mim.
teus braços
os abraços
teu corpo
em mim
a ânsia
o desejo
meus beijos
teus gestos
enfim
são gestos
e lembranças
de sonhos
sem fim.
Há anos
Há anos de dormência amorosa,
de sentimento avassalador,
de corpo e alma chorosa
de carinho, sonhos e de amor.
Há anos de maravilha familiar,
de vida harmônica e amadurecimento,
tudo antes sem cair no esquecimento,
armazenando a doçura de amar.
Nas insônias das madrugadas,
sentindo o ardor do sentimento
e perdendo o sono pelo desejo audaz,
aflora pelo amor de que sou capaz
de reter, das carícias, meu alimento
pelo desejo da mulher amada.
Muito tempo depois, Iraceminha retornou e está frente a frente com a serra para rever a obra natural da Ibiapaba.
Quando desceu a serra pela escada de pedras, se surpreendeu com milhares de prédios no pé da serra: eram casas diferentes da sua, com quintal pequeno, cercado e terreiro asfaltado.
Construções em cima das outras; ruas passando sobre o Riacho Ipuçaba; lixo nadando nas águas, deslizando entre as pedras; esgotos poluindo as águas do riacho.
Lá embaixo, voltou o olhar para a bica e para a serra. Chorou. Viu matas ralas, pedras cortadas, quebradas, caídas e árvores pequenas.
Suas esculturas já não eram como antes. Os pequenos córregos e os olhos d’ água secos.
Sua casa de pedra fedia como nunca.
Poesia pra quem ama o natal
Valdemir Mourão
natal não é apenas sorrir ao próximo
mas compreender a ausência do sorriso;
não só se lembrar da família
mas de quem não tem família pra se lembrar;
não é só festejar o nascimento de Cristo
mas lamentar por quem não pôde nascer
impedido pela pílula ou pelo aborto
pela ignorância ou pela falta de sentimento...
é agradecer pelos amigos que fez
é um dia enxergar o outro
e nele encontrar algo de valor...
além de cultivar uma força suprema
natal é ajudar a um irmão
que não se reencontrou!
VIDA
Valdemir Mourão
Para Maria do Carmo Maia Mourão
Vida,
uma taça de cristal
nas mãos trêmulas de um bêbado.
POESIA PRA QUEM AMA O MAGISTÉRIO
Valdemir Mourão
não vos desvaneçais
diante do vazio de uma sala;
alertai-vos, porém
para o porquê deste vazio;
não vos glorifiqueis
lembrai-vos, todavia
de que esta agonia
poderá ser a do vosso coração...
e a solidão do mestre
é a carência do trabalho.
não vos entristeçais
diante do vazio desta sala
saciai-vos, contudo, de esperança
por enchê-la de vozes
de entusiasmo, de garra
e de espírito sacerdotal.
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